Ofende a reserva de administração, decorrência do princípio da separação de poderes, a instituição de benefício assistencial por ato normativo de origem parlamentar, suprimindo do chefe do Poder Executivo a prerrogativa de conduzir as políticas públicas do município.
Com esse entendimento, o Órgão Especial do Tribunal de Justiça de São Paulo anulou uma lei municipal de Valinhos, de autoria parlamentar, que criou um benefício, chamado “bolsa live”, para artistas e trabalhadores do setor cultural independente da cidade durante a pandemia da Covid-19.
Ao ajuizar a ADI, a Prefeitura de Valinhos alegou que a norma impugnada interferiu na estrutura administrativa local, criando e ampliando atribuições a órgãos da Secretaria de Cultura sem o adequado planejamento, além de interferir em atos de gestão, violando o princípio da separação dos poderes.
O município também alegou que obrigar o Poder Executivo a conceder um benefício em plena pandemia prejudicaria o gerenciamento e planejamento de serviços públicos essenciais, em descompasso com a razoabilidade e a isonomia, gerando desigualdades entre os mais variados setores do comércio e da sociedade para prestigiar uma única classe.
Em votação unânime, a ação foi julgada procedente. “Conquanto louvável o intento do legislador em relação ao tema, tenho para mim que a Lei 6.002, de 30 de junho de 2020, do município de Valinhos viola, efetivamente, o artigo 5º, caput, da Constituição Bandeirante, de observância obrigatória pelos municípios de acordo com o artigo 144 da mesma Carta”, disse o relator, desembargador Renato Sartorelli.
Para o magistrado, a Câmara de Valinhos interferiu na gestão administrativa e na definição de prioridades para implementação de políticas públicas, usurpando do prefeito a prerrogativa de delibar sobre a conveniência e oportunidade da criação de um programa social durante a pandemia, “consubstanciando a norma local afronta à reserva de administração, corolário do princípio da separação dos poderes”.
Sartorelli também destacou a inconstitucionalidade do artigo da lei que conferiu novas atribuições à Secretaria de Cultura. Ele citou entendimento do STF de que fere a iniciativa privativa do chefe do Poder Executivo o ato normativo de origem parlamentar que disciplina novas atribuições a órgãos da administração pública, como ocorreu neste caso.
Por outro lado, o relator não vislumbrou ofensa aos princípios da razoabilidade e da isonomia, pois o setor cultural foi um dos mais atingidos pela pandemia, “encontrando-se em inegável situação de vulnerabilidade temporária passível de justificar a instituição de benefício emergencial em prol dos profissionais que deixaram de auferir renda, mormente diante do princípio da dignidade da pessoa humana”.
“No entanto, cuidando-se de assunto relacionado a escolhas políticas de gestão, a decisão a propósito da conveniência e oportunidade de sua implementação, a meu ver, está inserida, repita-se, na esfera privativa do chefe do Poder Executivo”, acrescentou o magistrado.