A Lei nº 14.133/2021 outorga à Administração Pública estruturas tendentes a um modelo administrativo mais dialógico [1], concedendo aos agentes administrativos, em diversas oportunidades, a possibilidade de transacionar, bem assim uma maior liberdade de atuação. No que toca aos mecanismos de pagamento, contudo, é perceptível que o legislador fixou regras preestabelecidas quanto à ordem cronológica de pagamento, havendo pouca margem para que haja alteração.
Diferentemente da Lei nº 8.666/1993, que, em seu artigo 5º, demonstrava, de forma mais abrangente e com vasto conteúdo de imprecisão, a possibilidade de alteração da ordem cronológica de pagamento quando “presentes relevantes razões de interesse público e mediante prévia justificativa da autoridade competente”, o legislador, na Lei nº 14.133/2021, tentou exaurir as hipóteses (§1º do artigo 141). Porém, mesmo atendendo o comando normativo [2], algumas vicissitudes carecem ser detidamente ponderadas: é este o propósito do presente artigo.
O artigo 141 inaugura o Capítulo X, da Lei nº 14.133/2021, que trata “Dos pagamentos”. Tal dispositivo legal antecipa o dever da Administração de seguir uma ordem cronológica para cada fonte diferenciada de recursos, subdividida nas seguintes categorias de contratos: “I — fornecimento de bens; II — locações; III — prestação de serviços; IV — realização de obras”. Há, portanto, um desígnio do legislador quanto à observância e cumprimento de uma fixada programação de pagamento — essa é, portanto, a regra.
Ocorre que o §1º do mesmo artigo 141 prevê a possibilidade de alteração da ordem cronológica prevista no caput do mesmo dispositivo legal, desde que haja “prévia justificativa da autoridade competente e posterior comunicação ao órgão de controle interno da Administração e ao tribunal de contas competente”, enumerando, exclusivamente, quais são as situações que autorizam referida modificação.
Ao que se percebe, o legislador, apesar de se utilizar de um adjunto adverbial de modo expressamente taxativo, “exclusivamente”, enumera cinco situações em que poderia haver a alteração da ordem cronológica prevista no caput, algumas delas de caráter objetivo, bem se diga. Entretanto, ainda remanesce, entre essas hipóteses, a incidência de uma certa dose de discricionariedade, o que pode provocar relevantes desafios, maiormente para o gestor público, o qual, com significante constância, teme a tenebrosa caneta dos órgãos controle externo.
De modo a facilitar a compreensão do leitor, enumeram-se quais são as hipóteses permitidas pelo legislador para que haja a alteração na ordem cronológica de pagamento: “I — grave perturbação da ordem, situação de emergência ou calamidade pública; II — pagamento a microempresa, empresa de pequeno porte, agricultor familiar, produtor rural pessoa física, microempreendedor individual e sociedade cooperativa, desde que demonstrado o risco de descontinuidade do cumprimento do objeto do contrato; III — pagamento de serviços necessários ao funcionamento dos sistemas estruturantes, desde que demonstrado o risco de descontinuidade do cumprimento do objeto do contrato; IV — pagamento de direitos oriundos de contratos em caso de falência, recuperação judicial ou dissolução da empresa contratada; V — pagamento de contrato cujo objeto seja imprescindível para assegurar a integridade do patrimônio público ou para manter o funcionamento das atividades finalísticas do órgão ou entidade, quando demonstrado o risco de descontinuidade da prestação de serviço público de relevância ou o cumprimento da missão institucional”.
Da leitura dos permissivos de alteração da ordem cronológica de pagamento acima previstos, imperioso mencionar que boa parte deles são verdadeiras medidas de efetivação de políticas públicas [3], as quais visam ao atingimento da igualdade em seu sentido material, como, por exemplo, a proteção às micro e pequenas empresas. Em verdade, coincidem com o que o artigo 5º, da Lei nº 8.666/1993, denomina de relevantes razões de interesse público.
Nada obstante o legislador condicionar a alteração da ordem cronológica de pagamento à posterior comunicação ao órgão de controle interno e ao Tribunal de Contas, e desde que previamente justificada pela autoridade competente, remanescem algumas inquietudes quanto a este primeiro aspecto, que se resumem a dois questionamentos: 1) qual o conteúdo da justificativa almejada pelo legislador?; 2) estaria o administrador público adstrito à prévia autorização do órgão de controle interno?
Bem, passemos, primeiramente, à análise dessas duas indagações. Quanto à primeira delas, há de se considerar que a justificativa da autoridade competente se encontra limitada pelo conteúdo dos incisos insertos no §1º do artigo 141. Assim sendo, inexiste para o administrador público a possibilidade de expandir estas hipóteses, razão pela qual o teor da justificativa se limita à correta e previsível motivação do ato, demonstrando e comprovando, na prática, a vantajosidade quanto à desobediência à ordem cronológica de pagamentos, como também evidenciando as relevantes razões de interesse público.
No que diz respeito ao segundo questionamento, há, inegavelmente, múltiplas alternativas de respostas. Isso porque o legislador apenas determinou a comunicação posterior da alteração da ordem de pagamento ao órgão de controle interno e ao respectivo Tribunal de Contas, mas não prescreveu a necessidade de autorização por partes desses órgãos de controle. Nesse ponto, ainda se faz necessário o estabelecimento de uma linha de corte entre o controle interno e o controle exercido pelo respectivo tribunal de contas.
Tal distinção se justifica pelo fato de o controle interno ocorrer de forma prévia, isto é, antecipadamente à realização do ato. Logo, em havendo uma incisiva negativa quanto à alteração na ordem de pagamento por parte do controle interno, não é viável que a autoridade competente proceda à alteração.
Por outro lado, é inegável que o controle interno não condiciona, necessariamente, a anuência do controle exercido pelo Tribunal de Contas competente. A despeito de o legislador mencionar que a alteração, devidamente justificada, deva ser comunicada, posteriormente, ao controle interno, como também ao respectivo tribunal de contas, sustentamos a tese de que a comunicação ao controle interno deve ser prévia, servindo de condição de validade do ato e evitando a incidência de penalização por parte dos Tribunais de Contas quando, posteriormente, informados.
Todas essas inquietações não se encontram plenamente solucionadas pelo legislador e, certamente, desaguarão em contundentes questionamentos de ordem prática, conforme preceitua o §2º do artigo 141: “A inobservância imotivada da ordem cronológica referida no caput deste artigo ensejará a apuração de responsabilidade do agente responsável, cabendo aos órgãos de controle a sua fiscalização”.
É factível que a autoridade competente possa ser responsabilizada mesmo tendo agido em conformidade com a previsão legal, sendo suficiente, para tanto, um descompasso entre as interpretações que podem ser conferidas ao mesmo dispositivo normativo. Dito de outro modo, o gestor pode verificar, em uma determinada hipótese, a existência de “grave perturbação de ordem, situação de emergência ou calamidade pública” (incidência do inciso I do §1º do artigo 141) e, por outro lado, o órgão de controle externo (respectivo tribunal de contas ou Ministério Público, por exemplo) pode entender pela inexistência de tais condições, o que, em tese, possibilita a responsabilidade da autoridade competente, mesmo que não haja manifesto erro grosseiro. É que o conceito de erro grosseiro, para fins de responsabilização do agente público, conforme artigo 28 da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB), ainda não foi plenamente sedimentado, seja na doutrina, seja na jurisprudência.
Todavia, afora os questionamentos acima suscitados, outros, de ordem mais grave — inclusive na seara criminal — tendem a despontar, precisamente porque a Lei nº 14.133/2021 inseriu, no Código Penal Brasileiro, o artigo 337-H, que tipifica o crime de modificação ou pagamento irregular em contrato administrativo: “Admitir, possibilitar ou dar causa a qualquer modificação ou vantagem, inclusive prorrogação contratual, em favor do contratado, durante a execução dos contratos celebrados com a Administração Pública, sem autorização em lei, no edital da licitação ou nos respectivos instrumentos contratuais, ou, ainda, pagar fatura com preterição da ordem cronológica de sua exigibilidade”.
Pragmaticamente, a responsabilização do agente, no âmbito cível ou criminal, poderá depender da interpretação sobre conceitos jurídicos indeterminados, eis que não existe, por exemplo, unanimidade quanto à correta averiguação prática do conceito de emergência.
Forçoso reconhecer, portanto, uma maior cautela da Administração quanto à alteração da ordem cronológica de pagamentos, sob pena de severas responsabilizações, especialmente na seara criminal. Lado outro, apesar do exaustivo rol fixado pelo legislador, mas considerando a fluidez de alguns conceitos que, em tese, oportunizam a alteração da preestabelecida ordem cronológica, deve existir, por parte dos órgãos de controle, um rigorismo particularizado quando da análise do caso em concreto, considerando as consequências práticas da decisão (artigo 20, caput, da LINDB), sob pena de inviabilizar o desiderato normativo, notadamente as medidas de políticas públicas intentadas pelo legislador ao fixar as alterações cronológicas de pagamento.
[1] Neste sentido: “OLIVEIRA, Gustavo Justino de. Direito administrativo pragmático. Rio de Janeiro: Lumen Juris. 2020”. Também no mesmo sentido: “FERRAZ, Luciano. Controle e consensualidade: fundamentos para o controle consensual da administração pública (TAG, TAC, SUSPAD, acordos de leniência, acordos substitutivos e instrumentos afins). Belo Horizonte: Fórum, 2020.
[2] É importante mencionar que, regulamentando a vagueza da parte final do caput do artigo 5º da Lei nº 8.666/1993, o Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão (MPOG) editou a Instrução Normativa nº 2, de 6 de dezembro de 2016, que dispõe sobre a observância da ordem cronológica de pagamento das obrigações relativas ao fornecimento de bens, locações, realização de obras e prestação de serviços, no âmbito do Sistema de Serviços Gerais – Sisg. Na prática, o §1º do artigo 141 da Lei nº 14.133/2021repete a quase totalidade dos incisos do §1º do artigo 5º da respectiva Instrução Normativa.
[3] PEREIRA JUNIOR, Jessé Torres; DOTTI, Marinês Restelatto. Políticas públicas nas licitações e contratações administrativas. 2 ed. Belo Horizonte: Fórum. 2012.
Link original: https://www.conjur.com.br/2021-mai-28/licitacoes-contratos-mecanismos-pagamento-lei-141332021