O plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) está julgando uma ação movida pela Procuradoria Geral da República (PGR) para limitar em 20 anos o tempo de exclusividade da fabricação de um produto, a partir da solicitação da patente.
Esta prerrogativa já está prevista na legislação, mas uma brecha permite que o prazo de proteção chegue a até 30 anos, caso o tempo de avaliação do processo pelo Instituto Nacional de Propriedade Industrial (INPI) ultrapasse os dez anos.
Na ação, a PGR cita 74 medicamentos que tiveram ou que poderão ter patente estendida, entre os quais Remdesivir, aprovado pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) para tratamento da Covid-19. A prorrogação foi vista como inconstitucional pela PGR. Caso seja declarada a inconstitucionalidade do trecho, a produção de genéricos para manejo da Covid-19 pode ser beneficiada.
Já no Congresso Nacional, está prevista a votação de projetos de lei que preveem a quebra de patentes das vacinas para Covid-19, ou seja, que suspendem o direito das empresas que desenvolveram os imunizantes comercializá-los com exclusividade por um tempo determinado. Isso significaria a permissão para a produção e comercialização dos imunizantes no Brasil sem o pagamento de royalties.
A quebra de patentes, vista como uma forma de acelerar a vacinação no país, é prevista pela lei de propriedade industrial brasileira (9.279/1996), no direito internacional, e no artigo 71 da Lei de Patentes brasileira, além de ter efeito imediato autorizado pelo decreto 3.201/99, da Presidência da República. Mas divide opiniões.
Para especialistas em saúde pública, a licença compulsória diminuiria a escassez de vacinas no mundo por acabar, mesmo que momentaneamente, com o monopólio na produção dos imunizantes. Já para os especialistas em propriedade industrial, a medida é encarada como expropriação do direito intelectual de cientistas e de propriedade das empresas.
O PL 12/2021, do senador Paulo Paim (PT-RS), prevê a licença compulsória de vacinas e medicamentos para o enfrentamento da Covid-19, obrigando os titulares das patentes a ceder ao poder público todas as informações de imunizantes ou medicamentos já licenciados pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) ou com pedidos de patente pendentes de análise pelo Instituto Nacional de Propriedade Industrial (INPI).
Outro que está na fila para ser votado é o PL 1.171/2021, dos senadores Otto Alencar (PSD-BA), Esperidião Amin (PP-SC) e Kátia Abreu (PP-TO), que prevê a licença compulsória do antiviral Remdesivir – remédio recomendado no tratamento contra o coronavírus, cujo preço está em torno de R$ 17 mil, o que inviabiliza seu uso em massa no Brasil.
Apesar da previsão em lei, a licença compulsória só foi utilizada uma vez no Brasil, em 2006. O governo Lula decretou a quebra da patente do Efavirenz, do laboratório Merck Sharp&Dohme, usado no tratamento da Aids. A medida resultou na redução de 72% no preço pago pelo remédio.
Antes, em 2001, o governo de Fernando Henrique Cardoso anunciou que quebraria a patente de outro medicamento antirretroviral, o Neflinavir. No entanto, após a declaração, o laboratório ofereceu condições mais favoráveis e o Brasil voltou atrás.
Entenda todos os lados envolvidos na discussão da quebra de patentes no Brasil.
Segundo Pedro Villardi, coordenador de Projetos do Grupo de Trabalho sobre Propriedade Intelectual (GTPI) da Associação Brasileira Interdisciplinar de Aids, manter monopólio de produção das vacinas em um período de pandemia, no qual a necessidade por vacinas é imensa, gera distorções ao direito à saúde e traz à tona um cenário de desigualdade no acesso às vacinas em todo o mundo.
“Durante pandemias, a população global precisa dos mesmos insumos ao mesmo tempo, e isso gera uma demanda muito grande. Se existem monopólios sobre cada insumo, isso vai gerar escassez, mas é uma escassez artificial”, afirma.
Para o especialista, o fato de a lei brasileira prever a licença compulsória em casos de emergência, oferece segurança jurídica para as empresas que quiserem produzir as vacinas no país.
“Se o PL for aprovado do jeito que está, considerando a necessidade da licença compulsória por ser uma situação de emergência, qualquer laboratório no país estará seguro de não estar violando nenhuma patente se quiser participar do esforço contra a Covid-19”, afirma.
A falta de capacidade técnico-produtiva e logística brasileira na produção de vacinas e insumos para Covid-19 é vista como impeditivo para a quebra de patentes das vacinas no país. Atualmente, o Brasil importa 90% dos insumos farmacêuticos que utiliza; 80% dos equipamentos e sensores, como os ventiladores, e 60% dos equipamentos de proteção individual, segundo dados da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz).
Para a imunologista Cristina Bonorino, membro do comitê cientifico da Sociedade Brasileira de Imunologia (SBI), além da carência de estrutura física e logística, falta ao Brasil expertise na produção de insumos de biotecnologia, elaborados, em sua grande maioria, na China, o que invalidaria a produção em massa de vacinas em curto prazo no país.
Bonorino concorda com a quebra de patentes das vacinas, sobretudo a das mais avançadas, que são as de RNA mensageiro (como a da Pfizer) e possuem eficácia acima de 90%. Mas reconhece que faltaria capacidade para a indústria farmacêutica brasileira realizar essa produção em escala industrial.
“O problema é que a indústria farmacêutica no Brasil não investe em inovação, se limita a reproduzir tecnologias estrangeiras, espera que caia a patente ou produz genérico. Temos que investir em pesquisa básica, produzir o insumo, o que nunca foi feito”, afirma a imunologista.
Jorge Kallil, coordenador dos Institutos Nacionais de Ciência e Tecnologia (INCT), lembra que o Brasil ainda vive um momento de adaptação de tecnologias para a produção das duas vacinas contra o coronavírus feitas no país: a Coronavac (Instituto Butantan) e a Vacina de Oxford/AstraZeneca (Fundação Oswaldo Cruz).
“Ambos os institutos ainda adaptam suas fábricas e constroem estruturas para suprir a demanda crescente por imunizantes”, afirma. Segundo Kallil isso é um indicativo de que o Brasil ainda não está preparado para a quebra de patentes das vacinas.
O coordenador dos INCT explica que o processo de adaptação ou construção de parques industriais de vacinas demora ao menos três anos, contando com área física, inclusão de equipamentos, linha de produção, validação de sistemas de controle, garantia e qualidade. “No patamar que o país se encontra hoje, “o Brasil não consegue, em menos de um ano, produzir nenhuma vacina”, completa Kalil.
Ter a sua descoberta patenteada por uma grande indústria pode ser o divisor de águas na vida de um cientista. Por isso, existe uma discussão sobre se a quebra de patente pode ou não desestimular esse mercado. Afinal, com a popularização de licenças compulsórias, algumas empresas podem deixar de investir em inovação, já que se veem obrigadas a passar sua propriedade intelectual a qualquer instante para governos.
A patente consiste em um instrumento de desenvolvimento tecnológico e econômico de um país, e o Estado oferece um monopólio provisório de mercado ao titular em troca da divulgação do seu invento, o que faz girar a roda da inovação.
A possível quebra dessa roda pode se refletir na queda de investimentos nos setores tecnológicos, além de retaliações econômicas e políticas, explica o advogado Marcelo Goyanes, procurador geral da Associação Brasileira dos Agentes da Propriedade Industrial (Abapi).
Por outro lado, há cientistas que se motivam a compartilhar suas descobertas, sobretudo, na pandemia, para ajudar populações que não teriam acesso à tecnologia por falta de recursos, explica Bonorino.
Ela lembra que o grupo de cientistas liderados pelo alemão Florian Kramer, do Hospital Mont Sinai de Nova York, cedeu a tecnologia que deu origem à Butanvac sem cobrar royalties ao Instituto Butantan. O que, para ela, certamente não vai alterar o mercado de patentes por ser uma ação pontual.
“A quebra de patentes a toda hora desestimula a inovação sim, mas durante a maior pandemia de toda a história, não. Vivemos uma emergência mundial. É uma questão moral”, afirma.
Para Pedro Villardi, a quebra de patentes não seria um desestímulo ao mercado de patentes no Brasil. Ele diz que a maior parte do investimento nas vacinas de Covid-19 foi feita por fundos de pesquisa públicos, ou seja, com dinheiro público. Isso quer dizer que as empresas que estão lucrando com a venda de vacinas financiaram apenas 25% dos investimentos em inovação. “Nada mais justo que essa patente seja um bem global”, afirma.
Diante da alta dependência do Brasil por tecnologia, o ideal não é partir para a briga com os grandes laboratórios, obrigando-os a ceder “sua receita de bolo na marra”, mas fazer acordos voluntários de transferência de tecnologia, como o Brasil já está acostumado a fazer, sugere Gabriel Leonardos, vice-presidente da Associação Brasileira da Propriedade Intelectual (ABPI).
Segundo o advogado, a licença compulsória é instrumento legítimo da lei, mas deve ser considerado um instrumento de exceção, pois é possível negociar preços com os detentores das patentes. “O governo brasileiro, que compra quase 60% de todos os remédios usados no país, negocia com o laboratório. Se a empresa coloca um preço alto demais, a licença compulsória é um instrumento para forçar a baixar o preço”, afirma.
De acordo com Leonardos, a história da licença compulsória de medicamentos mostra que, apesar de visar à aceleração na produção, ela pode tornar o processo mais lento, pelo fato de os detentores das patentes não fazerem questão de ajudar na transferência de tecnologia, já que foram forçados a isso. “Você pode até conseguir a licença, mas vai demorar mais para conseguir produzir, porque não vão te ensinar como fazer, vão só dar os ingredientes”.
Ele dá como exemplo a quebra de patente do Efavirez, que, apesar da licença compulsória, a Fiocruz só conseguiu começar a fabricar o antirretroviral no país quase três anos depois de dada a licença.
Para o especialista em propriedade intelectual, é mais rápido e vantajoso firmar contratos diretos com as empresas em meio à emergência sanitária. “De um lado paga-se um valor maior, porém, ganha-se na agilidade, na qualidade do produto, na facilidade de cooperação e no desenvolvimento tecnológico”, afirma.
Em 2020, Índia e África do Sul apresentaram uma proposta à Organização Mundial do Comércio (OMC) pela quebra de patentes das vacinas de Covid-19, mas a iniciativa foi rechaçada por Estados Unidos, União Europeia e outros países desenvolvidos.
Na ocasião, o governo brasileiro também se mostrou contrário à quebra de patentes das vacinas, mas incentivou contratos de licenciamento dos direitos de produção, para descentralizá-la, sob o argumento da “necessidade de preservar o equilíbrio entre o acesso a medicamentos e o inventivo ao desenvolvimento de novos tratamentos e vacinas”.
Para o advogado Marcelo Goyanes, o posicionamento do Brasil mostra uma mudança comparada a anos anteriores, quando o país se alinhou às propostas dos demais países em desenvolvimento em prol da saúde pública. Hoje o advogado vê o alinhamento do Brasil com os países que defendem as patentes, sob a alegação de que sua legislação local já predispõe de flexibilidades, como a licença compulsória.
“Esta é, inclusive, a solução defendida pela nova diretora-geral da OMC, a nigeriana Ngozi Okonjo-Iweala, ao propor que governos e empresas farmacêuticas cheguem a um entendimento entre si, sem necessariamente passar pelo licenciamento compulsório de patentes”, afirma.